O que há na nossa tela?


Pintar. Voltar à tela dos nossos registos e das horas absortas do mundo à volta. Voltar a esse pequeno mundo de imagens só nossas feito egoísmo pela melhor das intenções. De uma tela vazia, como o que temos dentro de nós, iniciarmos um novo trajecto pela mesma. Um caminho mentalmente percorrido dezenas, centenas de vezes. Os traços alongam-se, alargam-se, combinam-se, afastam-se e juntam-se. De novo. E voltam a divergir. Como os nossos próprios neurónios. Como os caminhos dos impulsos eléctricos neles percorridos. Os traços das nossas experiências. As imagens entretanto criadas. Passar à tela uma certa experiência. Uma vivência, mas que se quer alegre. Positiva. Lá, não se pretende nada de menos feliz. Nenhuma cor negativa. Só existem cores positivas. Tal como pensamentos que só os há, positivos. Não existem os negativos. Mas a negação dos de sinal mais. Não se conte ver uma não-tela. Ou uma não pessoa. Uma saber de uma não-experiência ou momento. Mas apenas da ausência delas. Ou passaram antes, ou hão-de surgir. Só positivo. Entendam-me. Falo das coisas como elas são. E não de como não são. O “não são”…não existe. Mas a sua negação, talvez. Nas sinapses há encontros. Há trânsito. Há cruzamentos. E assim, também, haverá na tela. Pessoas, momentos, emoções, sensações, ideias…Tudo pode ir para aquela tela. Duram quanto duram, ou têm de durar. Vivem quanto vivem. Depois, esfumaçam-se, ou passam à tela. As emoções e as memórias. Depois esfumaçam-se. Têm de dar lugar a outras. Mesmo nessa caixa de tremendos gigas… Ou ficam lá, mas não eternamente. Hão-de ser levadas por nós, connosco, para outra intemporalidade. Mas há outra ainda. A intemporalidade da tela. É rebuscada, não é real. Mas passa a existir, positivamente, enquanto tal. Preencherá espaço em branco e há-de confundir outros mortais. E rir-se deles. Se se rir, melhor. É o riso da tela e de quem a pintou, intemporal. Apagam-se as memórias, levadas com quem as teve. Mas não nessa tela, já não branca, de todo. Memórias de vivências. De pessoas, mas só das encantadoras. Não se querem lá as outras. Lembrem-se: sempre positivo. Não existem as não-memórias. Na tela há o fim de uma tristeza qualquer. E o início de uma impressão de eufórica beleza e da alegria incontida. Alguém nos marcou e só pode ser para bem. Positivo! Passam-se os traços a cores. E a formas. As sinapses misturam-se. Confundem-se e depois clarificam-se. No momento de maior abstracção os olhos enchem-se de dor e de muita felicidade vivida. Secam por si mesmos e continuam-se com os traços e introduz-se a cor. A tela vai perdendo o branco e o vazio é invadido. Essas sinapses estéticas, onde se calcula a imaterialização de uma pessoa, que nos foi a mais, e depois outra mais, gravam-se na tela. Por si mesmas. Silenciosa e instintiva que é a mão do pintor, inebriado. Nada o pode parar. O mundo pode, ele não. A tela é o registo urgente, imparável, irreversível e demolidor do melhor que lhe quer dar. Para sempre ali ficar. Juntam-se outras emoções, misturam-se umas e outras e dissimula-se tudo. Estetiza-se. As memórias e as ideias ficam só desvendadas a quem sabe. A ele e à razão dos impulsos nas suas sinapses. Mais cores e luzes. Formas que ganham forma. Esses cruzamentos dos tráfegos das nossas mais belas ou horríveis emoções e dos engarrafamentos perturbadores das nossas memórias, passa ele à tela. Vão-se construindo momentos. Efemeridades. Perdurações. Sonhos e esperanças. Ninguém sabe que é feito delas, mas tudo vai à tela. A receita manda misturar. Há dois grandes processamentos. Das passagens da vida para as células cerebrais. Um processamento micro industrial. Perfeito. Sem erros. Outro, imperfeito, com falhas e subterfúgios vários. Na passagem à tela. A vida é a matéria-prima. A nossa e a dos outros. A tela é o seu registo e o pintor, o escravo das duas.

A tela espera-se que perdure mais do que todos nós. E que conte a nossa história. Mas só nós a sabemos como foi.

Ali ficará o melhor de ti…
O que não for o melhor, fica de ti o que os meus olhos assim viram. E só viram de bom, pois assim o quiseram.
O que de ti não foi visto, ou vivido, ali se poderá inventar. E não há atrito que chegue, para perturbar as cores que, de ti, os meus olhos já não verão.

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