A Causa de muitas (das?) coisas

«Há uma instituição portuguesa que é única no mundo inteiro. É o "já agora". Noutras culturas, tratar-se-ia de um pleonasmo. Na nossa, faz parte do pasmo.O "já agora", e a variante popular "Já que estás com a mão na massa...", significam a forma particularmente portuguesa do desejo. Os portugueses não gostam de dizer que querem as coisas. Entre nós, querer é considerado uma violência. Por isso, quando se chega a um café, diz-se que se queria uma bica e nunca que se quer uma bica. Se alguém oferece, também, uma aguardente, diz-se: "Já agora...". Tudo se passa no pretérito, no condicional, na coincidência."
Miguel Esteves Cardoso in “A Causa das Coisas"

Mas há muitas causas e ainda mais coisas. Há as causas de um conflito entre dois povos, duas nações. A causa da actual guerra pro-fraticida Israel-Palestina/Hamas (apetece-me esta provocação, aos dois lados, que, de facto, nunca entenderam quão irmãos são). A causa, de uma dívida colossal, como as dos países mediterrânicos, que nunca é a causa oficialmente debitada, pelos moralmente débeis e perversamente não assumidos, centro-europeus. A causa de tanta coisa. De tanta desgraça dentro das nossas empresas, onde gestores, administradores, chefes e patrões, encontram causa, em nichos secretos de procedimentos atitudes e pessoais, que sé eles conseguem ver. 

De coisas menos boas, a más. Porque do que é bom, pode-se até procurar a causa, mas nunca nos preocupamos muito com essa demanda. Do que é mau, nos afecta, afecta muita gente, milhares e milhões de almas desgraçadas, normalmente…a causa até será outra.

Normalmente a “Causa” é a justificação, consciente ou inconsciente para se justificar o impossível de justificação. Normalmente, a causa é outra. Como o “queria” e não o “quer”. De facto, muito fado, muito nacional. A falta de assumpção da responsabilidade própria, também uma Causa nacional. Um desígnio português, sei lá. 

Pense-se na verdadeira causa deste conflito israelo-palestinino. Ou, faça-se melhor, esqueça-se a causa e pense-se na estupidez da coisa, que se liga à monumentalidade dos crimes de parte a parte. E em vez de termos a causa, procure-se a solução, sem a coisa na cabeça. 

É um pouco como a preocupação com a razão que se procura ter. Numa conversa, numa discussão, num diferendo, num conflito. A razão ou a procura do objectivo? Eu prefiro sempre saber se tenho um objectivo e procurar lá chegar. Menos, a razão, tê-la ou oferecê-la a quem a desejar. Ganhar a razão, sabe a pouco, é como a masturbação versus o prazer intenso a dois. Um consome-se, o outro perdura e fica memória. Como a razão e o objectivo. Quantas vezes perder a razão e atingir o objectivo, tendo outra pessoa a dita do seu lado, é a diferença entre avançar e conseguir, obter realização positiva, versus ficar-se com a sensação do prazer pequenino.

A causa nem sempre se deve procurar, mesmo quando temos esta tendência (muito minha, grande defeito, de tudo procurar explicar). A razão, talvez ainda menos. 

Dizemos queria, e não "quero", como refere Esteves Cardoso, um homem inteligente com uma capacidade lúcida de analisar o mundano e o contemporâneo social. Mas "queria…é desejo, ou sonho. Não é mau, mas sabe a pouco, e é condicional. Quero, é uma ordem que o nosso cérebro nos permite, na senda do sucesso. E é presente. 

“Já agora”…"eu queria"... Mas acontece que, também "quero", ou devemos "querer". Esbarra-se com tantas “causas”, “querias” e uma inexplicável cultura de resignação, ou mesmo de escolha pelo sofrimento colectivo, que até a linda “saudade” que nos move (ou não) que nos confunde pelo caminho. 

“Já agora” eu queria saber mesmo a causa da crise no BES. A da criminosa actuação no BPN, e no BES. A causa de tanta dívida nacional. A causa de tanta gente que enriqueceu ilícita e injustificadamente. E tantas, tantas mais causa. que já nem me lembro o que causou este texto a necessitar de uma forte desfibriliação mental.
Deve ser por uma causa qualquer...

(Nota: o título gostaria de glosar com uma expressão recentemente adquirida na língua portuguesa, que me provoca uma nova espécie de urticária, impossível de contrariar: o "muitas das vezes", em vez do "muitas vezes". Lembra-me outra....a contratualização, e não a contratação...irraaaa!)


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