Erros sociais e históricos

Por estes dias dificilmente me ocorrem pensamentos positivos. Olho, oiço e reflicto e não tenho sido capaz de concluir em substância que o nosso povo saiba o seu caminho, entenda o seu passado, ou respeite o seu presente, e a si mesmo.

Recordo-me bem de há uns trinta anos ter tido uma longa conversa, com uma ex-cunhada, sobre o desencanto que ambos sentíamos para com o nosso próprio povo. É pretensioso falarmos de um povo como um todo, e pensarmos que de alguma forma as nossas ideias são melhores do que uma massa enorme de pessoas, uma sociedade em geral, tem de si mesma e do que pensar ser e querer. Mas há momentos em que, parecendo assim, talvez se justifique esta ideia arriscada e muito politicamente incorrecta. Antes de prosseguir, lembrem-nos do que ainda hoje pensamos de outros povos. Do povo alemão, diversas vezes na sua história a julgar-se superior e a levar a destruição e a loucura a outros países. Nesse caso...um povo teve afinal uma espécie de pensamento colectivo que a história e as atrocidades e genocídios deram razão a quem fala de 'povo alemão' e que são nazis. Mas os alemães não são nazis, são talvez um povo que vive mais em colectividade e que cresceu como nação com um orgulho a toda a prova. Mau, em para muitos de nós, positivo para a Alemanha em si. Mas de outros povos pensamos algo parecido. Da arrogância dos espanhóis, franceses e ingleses. Mas nenhum deles tem uma história tão longa, com a mesma cultura e idioma que Portugal.

E no entanto...continuo a pensar que um povo comete erros. Erros colectivos e fatais. Por mais que pense na nossa história, e vivida por mim já ultrapassou meio século, vejo enormes erros e defeitos congénitos na nossa sociedade, no nosso povo. Não são erros e ilusões como as referidas sobre alemães, russos, ou americanos, ou espanhóis que reescreveram a história com sangue e destruição de civilizações. Se tudo isso tivesse acontecido já no século XX, a Espanha nunca teria conseguido escapar sem pagar o mesmo, ou muitíssimo mais do que a Alemanha foi obrigada a pagar (e não pagou a todos) pela I Guerra, como indemnização por danos infligidos a outros. O que a Espanha que muitos adoram fez há quase quinhentos anos, foi a maior e mais violente destruição de civilizações de a história tem memória. Um povo faz-se destas memórias colectivas. Um povo como o espanhol, move-se e mobiliza-se quando atingido por catástrofes generalizadas e, no entanto, também eles pelos dias de hoje, inseridos numa Europa em putrefacção, já são uma sombra de tempos passados. Espanha tem mais de um terço de pessoas em idade activa no desemprego. Um recorde mundial. E quem lá vai, assevera que vivem felizes...não me peçam para entender.

Portugal tem outros problemas na sua genética colectiva. Habituamo-nos a venerar quem julgamos importante. São doutores, são políticos, são padres, são todos aqueles que julgamos serem melhores e merecedores de respeito, apenas por terem estudado mais, ou terem uma posição social superior. Posição social, não é, forçosamente, posição humana. E somos muito contraditórios, nós portugueses e nós humanos. Sabemos que a cabeça nos comanda, e julgamos que uma posição social acima da nossa é sinónimo de superioridade, mas em simultâneo sabemos que muitos que aí estão, em posição de destaque, com poderes que podem mudar a nossa vida, o estão não por mérito, inteligência ou qualidades pessoais, mas por acesso a conhecimentos e amigos, por terem isso sim, um inteligência direccionada para a gestão de carreira, apesar de só terem isso. E só terem mesmo isso.

A mente comanda-nos em tudo. A inteligência não é a mesma em todos nós. Também há uns anos, um outro cunhado me dizia uma das maiores alarvidades de que me recordo, numa discussão intelectual (um professor numa universidade que passa os serões a fazer jogos electrónicos... e ver novelas): que todas as pessoas são igualmente inteligentes, mas apenas não tiveram oportunidade de descobrir o seu inteiro potencial. Infelizmente não é assim. Verdade que a grande maioria das pessoas não conseguiram descobrir o seu potencial intelectual, as suas capacidades mais inatas ou as que foram desenvolvendo, muitas vezes sem darem conta. Mas nem isso faz com a "inteligência" se possa equiparar entre a generalidade das pessoas. Uma das provas é exactamente o que iniciei a referir.

Se a nossa cabeça nos comanda, com ela elaboramos pensamentos simples ou complexos, com ela interpretamos, bem ou mal, o que vemos (a visão ocupa em termos físicos a parte maior do nosso cérebro), não a usamos numa análise do que somos como povo. Não a usamos quando nos infligem o que nos têm estado a fazer. Austeridade que nos colocou e ainda irá fazer pior, num patamar muitos anos atrás. É como regressarmos à nossa vida de há trinta ou mais anos. E aceitamos, havendo até quem me diga que tínhamos exagerado. Que tínhamos consumido a mais. Esta é uma mentira sem vergonha. O consumo privado não é o responsável pela crise e quem o disse devia ser arredado do poder no minuto seguinte. Vejamos bem as coisas: o consumo privado regressou a um tempo com mais de quarenta anos e a nossa dívida cresceu, os nossos gestores (privados) subiram os seus vencimentos, as grandes empresas portuguesas remuneram os seus gestores como nunca e os políticos não perderem as regalias. Perderam-nas alguns funcionários públicos (alguns que não gostam de assim serem designados, como Professores universitários e juízes, alvos também do que escrevo).

Como povo adoramos venerar os "importantes". E os "importantes" são tantas vezes os que não lutaram na vida para serem o que são: médicos em lugares de chefia, pilotos da TAP (!!! durante anos foram auferindo vencimentos muito acima da média, e totalmente descabidos para um país como o nosso), juízes (funcionários do Estado que não tiveram estaleca para se desenvincilharem como advogados e que a si mesmo conferiram poderes e estatuto à parte na sociedade, numa disparidade só observada em países latinos, talvez ainda uma herança de Roma), professores universitários que a si mesmo conferem um estatuto de Saber e Conhecimento nada correspondente à realidade, políticos que já todos sabemos as mordomias e uma importância de que se pretendem revestir sem mérito próprio. E estes ainda são os únicos a quem acusamos e não lhes damos o valor e a posição que desempenham.

Um povo tem de se ver a si mesmo com o mérito, intelectual e de experiência de vida que merece. E mesmo os mais humildes merecem o mesmo respeito, e devem-no dar a si mesmos, que dão a outros. Esta estratificação social, por cargos e funções, por profissões e estatuto financeiro leva a que um povo se deixe ficar numa apatia colectiva que nos trazido ao que estamos. A inversão desta tendência podia verificar-se pela inversão da cultura e espírito crítico do nosso povo, que nunca aconteceu em novecentos anos de história. Preferimos todos um caminho fácil, de preguiça intelectual. Ver novelas, tomar uns copos com amigos, fazer jogos lúdicos, discutir futebol, e com ele nos frustrarmos, e ver mais e mais televisão. Dizemos da política ser coisa suja, mas escusamo-nos a participar. Damos demasiada importância a quem não a merece. Por mim falo, mas ao contrário, porque vivi, convivi e partilhei vida com quem não tinha nem a mesma instrução, nem o mesmo prazer pelo conhecimento, informação e cultura ou mesmo esforço mental. Não usarei de falsas modéstias, quem conhece a minha vida sabe que assim foi e é. Valorizo um ser humano! Pessoas fantásticas e com uma cabeça que não se recusa a usar. Mesmo algumas que perdi ou poderei perder, com muita pena minha, por terem efectivamente uma grande capacidade e um valor humano inquestionável. Mas que pretenderam escolher outros caminhos e se apartarem. Mas não me desvio de um caminho em que o ser humano, e quem se bate na vida pensando e tentando ser melhor, me merece o maior respeito.

E é por isto que há muitos anos me custa observar a apatia de todo um povo, no que toca à sua própria evolução, a ganhar conhecimento e capacidade crítica fundamentada. O contrário já nos teria dado outros políticos, pela exigência que seria sentida na sociedade para tal. Já nos teria dado outros gestores e não os que temos a insistir em remunerações terceiro-mundistas mas pretenderem a mais elevada formação académica e profissional, ao nível do melhor do mundo (excepto nas remunerações), mas que a si mesmo aumentaram vencimentos e prémios anuais, em simultâneo com a perda real de salários dos seus colaboradores, ameaçados hoje de despedimento a qualquer momento. Isto é real e foi ainda esta semana divulgado. E continuamos na mesma rotina apática e dormente. A desigualdade que tanto tenho referido acentuou-se com a crise, e irá ainda piorar. Ouvimos notícias sobre recuperação de empregos, e nem nos perguntamos que se está a passar, pois sabemos todos serem empregos sem qualificação, muito mal remunerados, quando andámos numa campanha pan-europeia de melhorar as qualificações e o nível de vida. O projecto europeu de Merkel defende o acentuar desta desigualdade. Por julgar defender os interesses alemães, sem a visão de futuro a médio prazo que uma Europa assim não é sustentável, pretendendo ter países pobres mais pobres, para favorecer o sistema que nos arruinou, o financeiro e o judicial. Outro tema que me provoca alergia mental é a nossa mania pela importância do sistema judicial. A par da economia, que produz riqueza, pomos tudo ao contrário. São sistema que devem ser servidores de uma sociedade, são as pessoas que contam, não as Leis e as regras financeiras! Estas devem servir-nos, com humildade e respeito, se o país tivesse uma autêntica cultura democrática. E uma visão de Progresso.

Há uma urgente mudança a fazer-se. Encontrar outro Paradigma, entender o que queremos, por julgávamos já o saber, quando entrámos na CEE. Mas hoje estamos perdidos e julgados e reprimidos pela mesma Europa que nos ajudou em tempos. Levaremos gerações a ter um povo mais culto e crítico. Levaremos séculos a entender a igualdade entre as pessoas, o mérito na capacidade intrínseca de cada um. Mais ou menos inteligentes, todos temos mais, muito mais aptidões, que uma sociedade que venera incompetentes e inúteis consegue vislumbrar. Temos desde já uma capacidade colectiva já bem uma marca nacional: um certo humanismo e solidariedade por diversas vezes manifestos. Mas é tratarmos de nós como povo que nos falta.

Leio coisas como conquistas de Abril, conquistas na rua, em manifestações, todas legítimas, mas sem a sustentação do mérito pessoal e de toda uma classe profissional. Porque são alguma pessoas tidas como mais importantes e superiores? Claro que há sempre quem o seja. Mas nunca, nunca mesmo, uma classe inteira, como professores universitários, juízes, médicos, advogados, etc. Pessoas sim. Classes, nunca. E as conquistas não se fazem com sindicatos, podem ajustar-se injustiças de forma pressionada e mais célere, mas a sustentabilidade pode ficar em causa, mais cedo ou mais tarde. Cada um de nós tem de cuidar de si, melhorar, evoluir, ganhar mérito. Não vejo isso, em geral, mas sei que há muita, mesmo muita gente de valor intelectual. Conheci em França alguns agricultores que me ensinaram em poucos minutos, o que professores na minha faculdade levariam meses a fazer. Gente inteligente e profissional. Conheci em Portugal outros tantos, que se não de conhecimento, pelo menos de inteligência seriam pares de qualquer gestor, político ou profissional liberal. Há imensa gente, com imenso potencial intelectual mas que ou não tiverem oportunidade, por condicionalismos familiares, ou não tiveram a força de vontade suficiente. Este capital humano imenso existe por cá. Mas a par com uma preguiça colectiva que não consigo entender. Preferimos dar mérito a quem não o merece. Mesmo a nível pessoal, familiar tenho observado isto, e tido conhecimento de famílias ou casais que se separam porque um deles perdeu emprego ou capacidade financeira temporária. Somos humanos em sociedade e muito pouco em privado? Não sei, mas por vezes parece. São tantos os casos. Há quem tenha vergonha, num país com uns vinte por cento de desempregados, não oficialmente, de ter como companheiro ou companheira alguém em dificuldades. Mas nada fazemos para alterar um ponto de vista social, em que valorizamos discurso frouxos e pueris de tanto político, empresário ou comentador que nos aparece na tv.

Ou entendemos que uma Democracia sólida valoriza a igualdade e a oportunidade generalizada, que necessita de ser mais horizontal, crescer em conhecimento e cultura, com humildade e sem valorizar artificialmente classes profissionais como temos tradição em fazer, ou nunca teremos um verdadeiro progresso e um espaço na comunidade internacional. Um povo tem de avançar em bloco e não continuar a ter "capos" ou "Duces", ou "Führer" e eleitos sem mérito a pensarem (mal) e falarem (mal) por ele. Veja-se só o exemplo triste de um Presidente da Comissão Europeia nas suas declarações sobre a Rússia do ditador Putin, de quem não se esperaria nada de elegante ou alguma verdade.

Sinto-me tão triste com este meu país, como há trinta anos...e não sei se isto mudará em vida dos que conheço e da minha própria.

Optimista por convicção, acredito em que um dia entenderemos que são precisos líderes novos, com uma mentalidade de humilde democracia e respeito pelos que servem, seja na política, na sociedade em geral, nas empresas. Temos de abandonar o país dos Doutores e sermos o país de todos nós!





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