Uma revolução silenciosa

"Olhem para a sociedade em que nos tornámos: somos uma nação bipolar, um Estado burocrático centralizado que preside a uma cidadania crescentemente fragmentada e demissionária".

São palavras de Phillip Blond, filósofo britânico sobre o seu país, mas podem aplicar-se quase à perfeição a Portugal (e a outros países europeus. Parte da doença, ou crise social e emocional que grassa pela Europa, que tem gerado políticas erradas, no Estado e nas empresas, e líderes medíocres. Tempos de desorientação não geram líderes sólidos, inteligentes e bem formados).

Países como Portugal não estavam preparados para o que tem vindo a suceder desde os anos oitenta e noventa, a alguns anos depois de 2000. A entrada na CEE, a globalização, trouxeram novidades à nossa sociedade, nem todas boas. A globalização, em particular, trouxe consigo efeitos perversos, para os quais nunca estaríamos preparados.

Lembro-me de na multinacional alemã onde estava, por volta de 1995 se começar a falar em profundas transformações estruturais da empresa, que apanharam de surpresa os mais antigos, e os chefes da altura, que, numa primeira abordagem (como é comum suceder numa empresa assim, em que os chefes conhecidos são poucos e os que decidem estão muito distantes, sentindo-se esse clima de distância, de grande desnível hierárquico e de algum medo, pelo desconhecido. Alguém distante e hierarquicamente intangível é sempre alvo de um misto de respeito e medo, por não haver contacto próximo e existir um desconhecimento sobre o controlo emocional, perante um desconhecido) abraçaram a "mudança" para pouco depois serem os primeiros alvos de um despedimento que foi apenas internamente vivido e muito silencioso. Eu dependia da Alemanha e passei a depender de Espanha, momento em que se foram degradando as condições de trabalho, na altura muito privilegiadas. Em Espanha havia um chefe alemão, mas um jovem extremamente ambicioso, da geração que cresceu com a globalização, com a moda das grandes fusões de empresas já gigantes, e com a frieza dos números, a obsessão dos rácios, e uma falsa empatia, rapidamente traduzida em despedimentos graduais, sector a sector, num ambiente incaracterístico no que outrora havia sido uma empresa onde trabalhar era um prazer e se fizeram amigos para muitos anos. A estratégia foi confundir as pessoas, introduzir tecnologias que nem todos conseguiram acompanhar, colocar pessoas em funções de maior responsabilidade para logo depois as retirar, e dividir toda a gente. Este processo, que se iniciou muito com empresas alemãs, e se deu entre 1995 e 2002, foi um dos primeiro passos de transformação social e desintegração, social, familiar com profundas sequelas emocionais. Transformou toda a gente. Uns pela negativa, tendo após isso sempre imensa dificuldade em substituir um emprego altamente valorizado e qualificado por funções em empresas medíocres, muitas delas nacionais. Outros, por algum tempo, ainda usufruíram de negócios emergentes, fruto da desintegração das empresas.

A globalização e as fusões de empresas, que a acompanharam, transformaram profundamente a sociedade portuguesa, com consequências para empresas internacionais e reflexos nas empresas portuguesas. No seu rasto ficaram famílias com problemas de entendimento do processo, que a pouco e pouco se foram desintegrando. A sociedade foi sofrendo as consequências. Alguns dos que conseguiram ficar nos "barcos", ainda nas empresas que iam fechando ou despedindo colaboradores, e que foram enviados para comissões no exterior, transformaram-se como pessoas, nunca mais sendo os mesmos. Desses, algumas famílias se "esfacelaram".

Paralelamente, com a abertura do país e a globalização, foram surgindo espaços comerciais que vieram a ser decisivos, por um lado no acesso muito mais facilitado dos consumidores, eles também em processo de transformação dos horários de trabalho, fruto de novas ligações internacionais, e sem o tempo de que antes dispunham, por outro lado, fazendo desaparecer grande parte do comércio tradicional, mais próximo dos consumidores, mais amistoso e com um tipo de relações interpessoais que hoje só se vislumbra em pequenas povoações, fora das grandes cidades. As relações emocionais de outrora, foram-se desvanecendo, ou desapareceram de um momento para outro.

As novas ligações profissionais, a aprendizagem de novos costumes, a assimilação e adopção de hábitos, de trabalho e pessoais, distintos dos que nos caracterizavam, foram transformado a nossa sociedade, atomizando-a gradualmente, chegando-se ao que hoje temos, acrescido do efeito internet e que agarra as pessoas a casa, a contactos à distância de mensagens, comentários em redes sociais e a telefonemas, diminuindo assim, os contactos interpessoais directos. Com o mesmo processo, a natalidade foi drasticamente atingida. O tempo mais alongado para formação superior, seguido da formação intra-empresa, as viagens e comissões prolongadas no exterior, e as elevadas exigências em tempo e dedicação, agarraram as pessoas à profissão e afastaram-nas de uma vida familiar. Atingiu-se de morte a natalidade. Feriram-se mortalmente as relações em sociedade, grupo a grupo, família a família.

Outros factores contribuíram ainda para esta descaracterização temporária. A mania da tecnologia e de um mundo que dela depende e que ela tudo vende. A tendência tonta para passar a moda ao Ensino. Portugal não estava, igualmente, preparado. O choque tecnológico foi um dos maiores disparates do Governo desse vazio de ideias de nome Sócrates. Porque tudo veio no fim do percurso, mas um homem inculto e sem formação, não tinha capacidade de entender. Quando o mundo muda de paradigma, do tecnológico para o conceptual, tenta-se forçar um país a entrar na era da tecnologia. Que sempre terá lugar e ainda muito desenvolvimento, mas os pólos do mesmo, estão já deslocados para outras áreas geográficas, pois as condições produtivas e de competitividade nunca por cá foram criadas e em sociedades que relembram os anos do Taylorismo, agora a oriente, essas condições nem precisavam existir, tal a abissal diferença entre custos produtivos e de remuneração do trabalho. A impreparação da sociedade desorientou-a. E nada aconteceu de significativo, em termos económicos, que se considere compensador das perdas sociais e pessoais.

Ainda, para apenas mencionar alguns dos factores, a Energia. A dependência do exterior. O controlo dos custos de produção, de produtos e serviços, por alguém que não nós. E novamente alguma deslocação de decisão que teve reflexos sociais, porque os teve económicos.

Creio que este processo não é português, mas que Portugal estava especialmente impreparado para ele. Creio que este processo irá estabilizar, pode até já estar a suceder, dado que actualmente há outros processos em curso, que valorizam menos os profissionais, e atingem da mesma forma os grupos, famílias e sociedade. Mas são distintos, porventura mais desumanos, porventura e de alguma forma, inversos do anterior.

Creio que dentro de alguns anos, a sociedade portuguesa já entenderá estes processos, pois houve um tempo em que estava demasiado fechada ao que já ia sucedendo lá fora. Provavelmente um tempo chegará em que as relações se estreitarão novamente, as famílias estabilizarão, as amizades recuperarão a emocionalidade de antes. Um dos nossos problemas foi, talvez, nunca ter valorizado o lado emocional de uma sociedade. Com o efeito atomizador, que levou a uma grande dispersão social e a uma desagregação de interesses colectivos, ficámos pior e muito mais expostos a manipulações poderosas, orquestradas por gente que vive da desgraça dos outros, literalmente, das dívidas soberanas e dos seus juros, do empobrecimento provocado, para desequilibrar umas sociedades, em proveito de outras. Ainda estamos nessa fase. Em Portugal e na Europa. Onde menos se sente, foi onde se geraram estes movimentos, intencionais.

Ficámos também piores em mobilização social. Hoje sofremos as consequências, desta nova paz podre, sem indícios de intervenção mais directa dos cidadãos.

De uma forma natural, porventura, re-encontraremos a nossa cultura social, as nossas relações emocionais em sociedade. Não sabemos, parece-me, é em que ponto dos vários processos nos encontramos, e o que ainda será recuperável do que nos identificava e nos unia, socialmente. Não sabemos quando acontecerá nova viragem, ou quando estabilizaremos. Mas há que voltar a encontrar a Nossa Sociedade, alguma dela.

Talvez só após esse momento conseguiremos perceber o nosso Desígnio, que por agora não é o nosso, aquele que vivemos. E traçaremos, então, uma Visão para Portugal. Mas há que limpar esta Democracia, da corrupção que a consome e aos seus recursos económicos. Há que a renovar com outra gente nas lideranças, processos que provavelmente acompanharão todas as outras transformações.

Neste momento estamos, penso, na Idade Média dos tempos modernos, à procura de um reencontro com o que já fomos, mas inseridos num mundo muito distinto e em mudança quase permanente. É o nosso momento cinzento. Que aguarda, com o nosso empenho constante, sem passividade, por um Tempo Novo.


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