Cegos, surdos e mudos voluntários

Hoje, ao ver uma das conferências TED que muito aprecio, dei com Margaret Heffernan e a sua "The dangers of willful blindness" ("o perigo da cegueira voluntária").

Vale a pena ouvir com toda a atenção, cada palavra.

Willful blindness versus, Whistleblowers.

Lembrei de um dos meus heróis, provavelmente o único.

Um homem que na convulsão do seu tempo, percorria os jardins da cidade que o adoptou e sem nada ver à sua volta, não dando até pelos pássaros que tão bem soube representar numa sua obra (por sinal, uma das mais belas sobre o tema, de sempre e das líricas e encantadoras de toda a obra única que nos deixou), quase que passava pelas "brasas incendiárias" desses tempos e sem se deixar influenciar...chegava a casa, nos arredores de Viena, numa zona linda, de verde, onde hoje pululam os maravilhosos heurige, que nos deliciam com o seu vinho fresco do ano, os arranjos dos pátios, as flores os pássaros, jogos de luz e sombra que surpreendem quem chega de uma cidade de Sol, como Lisboa.


Um homem que, por desprezar a inferioridade manifesta das aristocracias, fundadas em tradições, ignorância e muito snobismo balofo, se exultou com a figura de Bonaparte, que era a um tempo a promessa de libertação, para o grande amante da Liberdade e um genuíno whistleblower (denunciante) da época e ... num segundo momento, rejeitou o seu herói, retirando a dedicatória inicialmente pensada para esta esplêndida sinfonia, Que pelos vistos, se iria chamar "Bonaparte" e ficou "Heróica", apenas por se saber ter sido inspirada numa falsa esperança.

Beethoven era um homem irascível, revoltado contra o abuso da aristocracia, que o adorava e ele continuava a desprezar e que...também se revoltava contra os tantos, como hoje, ou talvez menos, cegos por opção, surdos por adopção, mudos por vocação. Os habitué "willful blinds".

Acontece todos os dias. Acontece em todos os espaços. Temo-los por perto, temo-los longe de nós. Os voluntários da cegueira nada têm a ver com a surdez que Beethoven venceu da forma única como o fez: com as mais incríveis, complexas, belas e absolutamente ímpares, que lhe valerem entre muitos musicólogos a classificação da sua obra como forma do Classicismo, e do Romantismo. Apenas Beethoven, ele mesmo. O Grande amante incompreendido, da Liberdade e do Amor em que parece ter acreditado pouco. Mas um homem com uma capacidade de concentração transcendental fora do comum. Aquilo a que hoje se sabe e chama "momentos de fluxo",  fruto da nossa mente em momentos de concentração sem igual, que nos apartam do nosso ambiente, e nos podem fazer criar, com uma força incrível e um dispêndio mínimo de energia e capacidades. Era Beethoven o seu maior exemplo vivo, por esses tempos.

Nunca fui um conservador. Nunca fui um classicista. Sempre detestei a frase "no meu tempo", porque o meu tempo são todos os dias até deixar de viver. Sempre a lutar pela mesma modernidade e capacidade de aprendizagem que aprendi dos gigantes da minha civilização. Mas com o mesmo amor à liberdade que gostaria de ver em tudo à minha volta. Sem willful blindness, mas com tudo o que já se sabe.

A humildade de governantes, a transversalidade das oportunidades, a sociedade ela mesma, sem fantasias e falsas superioridade, sem aristocracias saloias e idiotices que tais. "Ser bem nascido" não existe. Existem circunstâncias, que ora sim, ora não, se verificam. Num tempo, triunfam, noutro leva-as o vento.

Essa a mensagem do grande Beethoven, plena em toda a sua obra. Admirado pelos que mais desprezava, como só pode acontecer aos que são verdadeiramente maiores, melhores do que nós, génios (em que não acredito, mas que me é confortável e oportuno o termo, por vezes, como agora), se quiserem.

De homens assim temos escassez, porque os tempos fazem os homens e eles, por aí sempre andam e andaram. Mas, os tempos favorecem os medíocres, os pobres de espírito, num tapete de infelizes, que devia ser pisado pelos inteligentes e humildes, com a noção e responsabilidade de ninguém ser alguém por si mesmo, sozinho. Excepto alguns. Mas nem todos podemos ser Beethoven(s)


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